24 de outubro de 2015

«Deixámos tudo nas mãos, na cabeça e sobretudo no grande coração do Papa Francisco»


D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa e um dos delegados da Conferência Episcopal Portuguesa, fez, em primeira mão para a Família Cristã e a Agência Ecclesia, um balanço deste Sínodo e do relatório acabado de aprovar. À saída da aula sinodal, o prelado mostrava-se muito «satisfeito» com o resultado dos trabalhos das últimas três semanas e com o consenso que foi possível alcançar na aula sinodal em relação a todos os pontos do relatório final.

Satisfeito com o resultado destas três semanas de trabalho? 
Muito satisfeito. No complemento do que aconteceu o ano passado, os temas foram tratados com mais incidência na missão da família na Igreja e na sociedade, mas com muita serenidade. Eu estive nos dois sínodos e reparei nisso, como a generalidade dos meus colegas também repararam, sobretudo os que tinham estado o ano passado, porque, na primeira vez, alguns dos temas tratados aqui, a este nível, e numa assembleia com o Santo Padre, apareciam de forma meio inusitada, e causavam perplexidade e debates intensos e acalorados, por vezes. Desta vez foi tudo tratado com muita serenidade, quer no plenário, quer nos trabalhos de grupo. As questões já foram vistas com outra naturalidade, e isso deve-se muito à feliz ideia do Santo Padre de não ter querido resolver o assunto numa só assembleia sinodal, mas nestas duas fases. Isto começou com uma consulta ao povo de Deus, depois uma assembleia sinodal, os resultados da primeira assembleia voltaram às dioceses, depois voltaram aqui e foram aprofundados no sentido mais de projeção da realidade da família na sociedade e na igreja... toda esta sequência permitirá agora ao Santo Padre pegar nas reflexões e nos resultados, nas propostas desta assembleia, e ver que tratamento lhe há-de dar. Todos ficamos à espera que, como sucessor de Pedro, nos confirme na fé a nós e às famílias cristãs.

Havia a ideia de que a assembleia estava dividida em muitos assuntos, e que não havia forma de resolver os problemas levantados... 
O burburinho que por aí houve não correspondia ao que se passou na aula sinodal, nem nos trabalhos de grupo, nem nas conversas de corredores, nada... Este foi um exercício de sinodalidade, um caminho que se faz em conjunto, e que o Papa quer que se torne habitual na vida da Igreja a todos os níveis. Ainda agora foram os 50 anos do Sínodo dos Bispos e ele sublinhava muito este aspeto de caminharmos em conjunto nos diversos patamares da vida da Igreja, das famílias às comunidades, aos movimentos, às dioceses, as conferências episcopais, aqui em Roma... este tipo de vivência eclesial, que o Papa exprime como sinodalidade, vai ficar e de certa maneira vai transpor para a Igreja aquilo que é mais espontâneo nas famílias, onde todas as pessoas conversam frequentemente, partilham uma vida muito próxima e comum nas famílias, homens, mulheres, pais e filhos. Que isto se projete também na história da Igreja num exercício conjunto de vida e de procura é o que se espera.

E a Família, como fica, depois deste Sínodo? 
Essa poderia ser a primeira nota a retirar, a família. Como o Papa disse no discurso final, não saímos daqui a dizer e a pensar “família” como quando esta reflexão começou. Com a ajuda das várias famílias aqui presentes, responsáveis de movimentos familiares leigos e leigas, e até um bebé que de vez em quando chorava na aula sinodal e nos lembrava a realidade familiar em todas as suas faces, enfim, com tudo isto, vamos muito mais enriquecidos para as igrejas que servimos nas nossas dioceses com uma reflexão conjunta e que sublinha o papel real da família na Igreja e na sociedade. E com uma consequência prática muito forte: se isto é assim, temos de dar muito mais importância às famílias, à preparação para o matrimónio, ao acompanhamento das famílias cristãs, mesmo aquelas que vivem em rutura, para vermos o que podemos consertar com a ajuda de todos.

E naquelas em que já não é possível consertar nada? 
Naquelas em que já não seja possível recuperar a situação anterior, continuar a considerá-los, como são, nossos irmãos e irmãs, batizados que têm o seu lugar na comunidade cristã. O aspeto muitas vezes frisado de saber se acedem ou não à comunhão sacramental não foi demasiado frisado como foi o ano passado, porque a comunhão eclesial não passa necessariamente por aí, dada a ligação que esse aspeto tem a uma ordem de Cristo aqui citada muitas vezes, que foi «não separe o Homem aquilo que Deus uniu». É preciso ter uma atenção redobrada da parte da Igreja a saber se Deus uniu mesmo, ou seja, se foi válido aquele sacramento, e daí a importância do Motu proprio do Papa no mês passado, que fez com que nós encaremos, nas dioceses, de forma, não digo mais fácil, mas mais simplificada todos esses casos. Porque se realmente a família é assim tão importante, vamos dar-lhe a importância que ela tem, quer na preparação, quer no acompanhamento daqueles que já não vivem a família como a começaram dantes. Para todos uma atenção redobrada, porque o seu papel é indispensável para a Igreja e para a sociedade.

O documento dá indicações claras às igrejas sobre como proceder perante as situações irregulares, e na necessidade do discernimento e de julgar caso a caso. Até onde pode ir essa distinção? Até à comunhão, em alguns casos? 
A comunhão sacramental tem a ver com a validade do vínculo, e saber se houve ou não houve, e a atenção a esse nexo é que fica aqui mais vincada e mais redobrada. Depois o acompanhamento caso a caso, quando o Sínodo falou nisso, é para verificar o que o Papa João Paulo II já disse há 30 anos na Familiaris Consortio. Temos de ter muita atenção porque os casos não são todos iguais, e às vezes uma expressão forte pode encobrir situações muito diversas. É o que estamos a fazer e o que vamos continuar a fazer.

Mas pode chegar a permitir, em casos pontuais, o acesso à comunhão de alguns desses casais, em casos específicos, com um caminho penitencial próprio? 
Está sempre em ligação com o vínculo, de saber se houve ou não houve. Por isso, a atenção mais pessoal a cada caso pode permitir constatar se houve ou não houve vínculo. Muitas vezes constata-se que não houve vínculo matrimonial e abre-se a porta à comunhão.

D. Manuel Clemente e D.Antonino Dias, os dois delegados da Conferência Episcopal Portuguesa ao Sínodo

Do relatório, o que destaca ser mais importante levar para a Igreja em Portugal? 
O novo protagonismo que a família cristã tem de ter na comunidade para depois se projetar na sociedade. A sociedade portuguesa, como a generalidade das cidades do chamado mundo ocidental, é muito individualizada. As pessoas já não vivem naqueles núcleos familiares garantidos e tradicionais, ou por procura de trabalho, ou porque nem as próprias casas permitem que lá vivam famílias grandes ou porque o ambiente não valoriza muito a constituição de famílias numerosas. É preciso reforçar o papel da família na vida da Igreja, para ela ser sinal, testemunho e fermento de um reforço da família na sociedade. As famílias cristãs são famílias da nossa sociedade. Reforçado o seu papel e a consciência do que valem, também depois isso pode e deve transferir-se para a sociedade no sentido de a tornar mais familiar, mais próxima, mais vizinha, mais solidária entre gerações, todos. Isso aprende-se na família e se queremos fazer uma sociedade humana temos de começar por aqui. 

Algumas pessoas temiam um relatório pouco prático, em relação a diversas matérias. Sente que é um relatório que aponta caminhos práticos e concretos, onde o Papa se poderá basear para definir o papel da família na Igreja para os próximos tempos? 
Creio que sim, e foi isso mesmo que pedimos ao Papa. Com estas reflexões vindas dos grupos, que contêm sensibilidades que são distintas, conforme os continentes, as regiões e as culturas, pedimos que nos dê orientações mais concretas e mais práticas. Pediu-nos para refletir a nós e a toda a Igreja, que o fez com todos os milhares de respostas que aqui chegaram, pelo que agora deixámos isto tudo nas mãos, na cabeça e sobretudo no grande coração do Papa Francisco, e esperamos que nos diga como é que vai ser.



Texto e fotos: Ricardo Perna

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