25 de outubro de 2015

Acolher e discernir: a Igreja ao encontro da Família


Após três semanas de discussão e reflexão, o Sínodo dos bispos aprovou o relatório final que será entregue ao Papa como base de reflexão para que possa decidir o caminho que a Igreja fará com a Família para que esta possa ser, «na sua vocação e missão», um «tesouro da Igreja». Os 94 pontos do relatório foram aprovados pela maioria de 2/3 necessária à sua publicação como parte do relatório, o que reflete o que vários participantes foram dizendo à comunicação social durante os dias de trabalho, e que contradizia a alegada divisão que era noticiada por alguns órgãos de comunicação social.

O consenso foi conseguido mesmo em matérias mais sensíveis, como o acompanhamento dos divorciados recasados e aos casais em situações irregulares ou de rutura, que mereceram mais votos contra.

O Papa abordou essa questão no seu discurso final, quando falava na necessidade de compreender que as sensibilidades das diferentes culturas e realidades de todo o mundo levavam por vezes a entender de forma diferente o mesmo assunto, o que se traduz naturalmente numa riqueza de partilha e em eventuais discordâncias em algumas soluções.

Pastoral do discernimento com casais em situações de rutura ou irregulares 
Este caminho sinodal de dois anos resultou em duas perspetivas que podem marcar o futuro da Igreja nos próximos anos em relação à família: acolher e discernir. O acolhimento tem sido a grande bandeira já desde o sínodo do ano passado. Os participantes defenderam na altura, como defendeu este Sínodo, a necessidade de mudar a linguagem da Igreja, e torná-la mais positiva, não excluindo ninguém do seu seio.

No seu discurso, o Papa avisava que a Igreja não pertence apenas aos «justos e santos, mas é também pertença dos «pobres em espírito e dos pecadores a espera de perdão». Durante estas três semanas, os participantes do Sínodo pediram que a Igreja tivesse uma linguagem mais «positiva», que não afastasse ninguém.

Esse é o primeiro passo do acolhimento, mas o Sínodo foi mais longe. «A Igreja deve formar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – na “arte do acompanhamento”, diz o documento, que reafirma a necessidade de se falar do «sacramento do matrimónio» que, «como união fiel e indissolúvel entre um homem e uma mulher chamados a acolherem-se reciprocamente e a acolherem a vida, é uma grande graça para a família humana».


Nunca deixando em vista este fim último, e tanto o Sínodo como o Papa foram bem claros na necessidade de reafirmar a Doutrina da Igreja sobre o casamento e a família, o relatório pede uma atenção especial a todas as situações irregulares. O texto que vai ser agora entregue ao Papa refere que é missão dos padres «acompanhar as pessoas no caminho do discernimento segundo o ensinamento da Igreja e as orientações do bispo».

Na votação final, 178 dos 265 participantes que votaram (mais um voto do que os necessários para a maioria de dois terços), aprovaram o número 85, em que se apela a um «exame de consciência» das pessoas em causa sobre a forma como trataram os seus filhos ou como viveram a «crise conjugal». O documento questiona ainda se houve «tentativas de reconciliação», qual a situação do «cônjuge abandonado» e quais as consequências da nova relação «sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis». «Uma reflexão sincera pode reforçar a misericórdia de Deus, que não é negada a ninguém», diz o documento.

Este relatório não aborda diretamente a possibilidade de acesso aos sacramentos dos divorciados recasados, que é neste momento negada pela Igreja Católica. Sobre isso, os participantes apresentam critérios de reflexão, recordando que há «condicionamentos» que podem anular ou diminuir a responsabilidade de uma ação. «Por isso, mesmo apoiando uma norma geral, é necessário reconhecer que a responsabilidade em relação a determinadas ações ou decisões não é a mesma em todos os casos», e nesse sentido nem «as consequências dos atos realizados são necessariamente as mesmas em todos os casos», pelo que é essencial o «discernimento pastoral» que tem de acompanhar cada situação.

O texto cita o ensinamento de São João Paulo II na Familiaris Consortio: «Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. Há, na realidade, diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram por salvar o primeiro matrimónio e foram injustamente abandonados e aqueles que por sua grave culpa destruíram um matrimónio canonicamente válido». «Há ainda aqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio irreparavelmente destruído nunca tinha sido válido», acrescentava o Papa polaco, na sua exortação apostólica sobre a família.

A grande novidade, que abre a porta ao acesso dos divorciados recasados aos sacramentos que lhes eram até aqui negados, surge no ponto 86 do relatório. «A conversa com o sacerdote, no foro interno, contribui para a formação de um julgamento correto sobre o que dificulta a possibilidade de uma  mais plena participação na vida da Igreja e as medidas que podem promovê-la e fazê-la crescer», diz o relatório. A ideia de plena participação na Igreja inclui o acesso a sacramentos como a confissão e a comunhão, embora o documento não especifique claramente esta questão, deixando tudo na consciência do pecador e do sacerdote que o acompanha.

Preparação para o matrimónio mais efetiva 
Outro dos pontos fortes do relatório é a necessidade de uma preparação para o matrimónio mais efetiva, exigente, longa no tempo e, acima de tudo, inserida na vivência da comunidade paroquial. «A pastoral dos noivos deve inserir-se no empenho geral da comunidade cristã de apresentarem de modo adequado e convincente a mensagem evangélica sobre a dignidade da pessoa, a sua liberdade e o respeito pelos seus direitos», refere o relatório.

Para além disso, o relatório sugere que os agentes pastorais locais promovam a «integração da família na comunidade paroquial, sobretudo na formação cristã em vista aos sacramentos». Para isso, alertam que é importante que os sacerdotes sejam formados, a partir do seminário, a serem «apóstolos da família». O texto conclusivo do Sínodo valoriza a dimensão familiar na preparação do clero e dos religiosos, defendendo em particular uma «maior presença feminina na formação sacerdotal».

Os bispos apresentam depois os primeiros anos de casamento como um «período vital e delicado» para os casais católicos, o que exige um «acompanhamento pastoral que continue após a celebração do sacramento», com o compromisso de todas as paróquias e a ajuda de «casais especialistas», associações ou movimentos.

A este respeito, recorda-se que as dificuldades em ter filhos podem levar «rapidamente» a uma separação, pelo que as comunidades católicas devem oferecer um «apoio afetuoso e discreto». Aos padres é pedido também que acompanhem as famílias em situações de «emergência», provocadas por «casos de violência doméstica e de abusos sexuais».



A Família na sociedade
Grande parte dos 94 pontos postos a votação dizem respeito ao contexto sociocultural em que a família se vê envolvida na sociedade de hoje nas diversas partes do mundo, com os seus respetivos desafios. O Sínodo dos Bispos deixa uma mensagem de solidariedade às vítimas de violência doméstica e de maus-tratos, além de reafirmar «tolerância zero» para casos de abusos sexuais. «A prevenção e a resposta aos casos de violência familiar exigem uma colaboração estreita com a justiça para agir contra os responsáveis e proteger adequadamente as vítimas», refere o relatório final.

Os «grandes valores» do matrimónio e da família cristã como respostas aos anseios da humanidade num tempo de «individualismo» e «hedonismo». «A família baseada sobre o matrimónio do homem e da mulher é o lugar magnífico e insubstituível do amor pessoal que transmite a vida», refere o documento. Partindo de uma análise do contexto cultural e religioso em que vivem as famílias, face a uma mudança «antropológica» em que surge o desafio da ideologia do género, que «nega a diferença e a reciprocidade natural do homem e da mulher», o relatório analisa em seguida as situações dos vários elementos dos agregados familiares, com atenção aos idosos e criança, aos viúvos e aos solteiros.

São apontados alguns «desafios particulares», como a poligamia, o casamento entre católicos e fiéis de outras confissões cristãs ou religiões, a secularização ou a «desconfiança» dos jovens em relação ao matrimónio, e a família é apresentada como o «porto seguro», a «célula fundamental» da sociedade numa época de fragmentação.

O relatório final do Sínodo dos Bispos contesta ainda as políticas e os sistemas económicos contrários às famílias, em particular as que vivem em situações de pobreza e exclusão. «A hegemonia crescente da lógica do mercado, que mortifica os espaços e os tempos de uma verdadeira vida familiar, concorre para agravar discriminações, pobrezas, exclusões e violência», alerta o documento.

Os participantes dirigem-se às autoridades políticas para exigir que estas se empenhem «seriamente» na defesa da família, um «bem social primário», com políticas que a «apoiem e encorajem». «A acumulação de riqueza nas mãos de poucos e o desvio de recursos destinados ao projeto familiar agravam a situação de pobreza de famílias em muitas regiões do mundo», adverte o relatório.

Depois de todo este debate, falta agora saber a vontade do Papa. Francisco pediu uma abertura da Igreja ao acolhimento, e o Sínodo embarcou nessa nova missão de acolher verdadeiramente a todos, sem não esquecer a doutrina ou a tradição da Igreja. O verdadeiro desafio começa agora.



Texto: Ricardo Perna (com Octávio Carmo)
Fotos: Ricardo Perna

0 comentários:

Enviar um comentário