30 de setembro de 2015

«Na Igreja celebramos o casamento, mas depois não acompanhamos as famílias»


D. António Francisco dos Santos, bispo do Porto, falou à Família Cristã sobre o Sínodo que agora se inicia, revelando que espera decisões concretas da parte do Papa. Para o prelado do Porto, a principal preocupação está na integração dos casais na comunidade, num caminho que se inicia na preparação para o matrimónio, que deve ser mais exigente, e continua depois do matrimónio, num acompanhamento que as comunidades ainda não dão aos seus casais.

O Papa tem tentado chamar a atenção para a família, marcando estes dois sínodos e dedicando as suas catequeses semanais a esta temática. É uma estratégia que está a resultar? As pessoas estão, de facto, a olhar mais para a família? 
Eu penso que foi uma pedagogia muito própria do Papa Francisco, que eu admiro. Ajudou-nos a compreender que a decisão do Sínodo sobre a Família era uma decisão dele, rezada junto de Deus. Ao chegar, o Papa Francisco trazia esta preocupação e este sonho de colocar a igreja disponível para refletir sobre a família. Foi uma pedagogia nova, pois ele quis realizar o Sínodo em dois momentos. Primeiro numa assembleia extraordinário, em que quis auscultar todo o mundo, independentemente de serem cristãos ou não. Procurou que aí se afirmasse e revelasse o que o mundo e a sociedade pensa da família, não apenas a igreja. Agora, com esta segunda fase, ele procurou devolver essa reflexão às nossas dioceses para que lhe digamos aquilo que pensamos e sonhamos para a família.

Mas a estratégia de facto levou as pessoas a discutir mais a família? 
Teve frutos práticos em três vertentes: valorizámos a família no que de melhor e mais sagrado tem, que é fonte de vida, espaço do amor e escola da educação e igreja doméstica; veio dizer à humanidade inteira, que deu grande atenção à decisão do Papa, que a família é importante, e nós na sociedade muitas vezes não damos essa importância e desvalorizamos aquilo que ela mais precisa, que é o respeito e ajuda de todos nós; em terceiro lugar veio dizer que a ação pastoral tem de ser diferente. Precisamos de ter mais atenção quer à preparação das famílias, quer ao acompanhamento depois da celebração dos sacramentos. Muitas vezes a igreja tem esquecido esse acompanhamento espiritual, humano, de integração na comunidade, de ajuda nos momentos difíceis.
A Igreja tem de fazer aí um imenso caminho. Há muito trabalho feito, valorizemo-lo, mas há ainda um grande caminho para andar, e muita forma diferente de acompanhamento e acolhimento, e mesmo de valorização dos movimentos de espiritualidade familiar, ao qual não temos dado tanta atenção como deveríamos ter dado.

No relatório final do Sínodo extraordinário, falou-se da necessidade das famílias serem sujeitos de evangelização, em vez de meros objetos de evangelização. As famílias já compreenderam esta urgência de se “chegarem à frente”? 
Eu creio que esse é um dos dados mais valiosos do relatório final e uma das descobertas que quem está mais atenta à vida das igrejas diocesanas há muito o fez, mas que nem sempre deu a visibilidade e importância e até a capacidade institucional necessária. Nós setorizamos demasiado a pastoral. Fizemos catequese para as crianças, pastoral de saúde para os doentes, serviço social aos idosos, tivemos algum acompanhamento nos movimentos de casais, mas nem nas comunidades promovíamos momentos em que toda a família podia estar reunida. Ultimamente a catequese deu-se conta que o melhor caminho é valorizar a catequese familiar, e a pastoral deu-se conta que, mais do que setorizar iniciativas, temos de valorizar a família no seu todo.
Esta é hoje uma realidade palpável e só não vê isso quem não quer, e por isso é necessário que todos nos mobilizemos para isso. A minha experiência dos anos mais recentes diz-me que sempre que fizemos propostas para a família, os resultados foram mais eficientes, sólidos e continuados no tempo. Em Portugal este é um caminho obrigatório para a Igreja.

Parece-lhe mais importante que do Sínodo saiam contributos para o Papa mais na área da prevenção (preparação para o matrimónio, formação dos sacerdotes, planeamento familiar), ou na área dos paliativos (nulidade, comunhão dos recasados, etc)?
Todos esperamos muito do Sínodo, e é bom que o façamos, pois foi nesse sentido que o Papa o propôs. Esperamos muito em todas as vertentes, e é normal que esperemos caminhos novos. Embora esta exportação apostólica não seja pós-sinodal, o Papa ensinou-nos a não fazermos apenas grandes reflexões pastorais, mas a abrir caminhos de propostas concretas. Aquilo que espero do Sínodo é que, com o contributo de todos nós, que tem sido muito responsável da parte de todos nós, bispos, sacerdotes e todas as bases, os padres sinodais tenham todas as possibilidades de, com o caminho já feito, darem ao Santo Padre o verdadeiro pensar da Igreja. O Santo Padre dar-nos-á depois caminhos novos e propostas concretas que nos vão ajudar a preparar a família a ser família, a ajudar a família a viver feliz, como família cristã, e ao mesmo tempo a ir ao encontro das situações mais difíceis, que é preciso ajudar.

Precisamos de uma preparação para o matrimónio mais exigente?
Penso que há experiências em algumas dioceses em Portugal onde a preparação começa com mais tempo. Há outro elemento que é importante: que a preparação seja feita na comunidade, não apenas no cartório paroquial, ou com uma equipa em reuniões com o sacerdote.
Mas precisamos é de acompanhar depois do matrimónio. Penso que a lacuna maior da pastoral da Igreja na relação com as famílias não foi na preparação, foi no acompanhamento dos novos casais e das famílias no seu todo. A comunidade precisa de se responsabilizar pela celebração do casamento. Na preparação para o casamento, precisamos de implicar a comunidade paroquial no acompanhamento destes casais, para que eles sejam parte integrante da vida da comunidade. O que tem faltado muito na Igreja é que nós celebramos o casamento mas depois não acompanhamos as famílias, não as sentimos inseridas. Preocupamo-nos com os crismandos, e que os crismados devem ficar integrados nas atividades da Igreja. Porque é que não fazemos o mesmo com quem celebra o sacramento do matrimónio? É um sacramento de integração na vida comunitária…

E como é que esse acompanhamento pode ser feito? 
Pode ser feito não colando apenas a preparação do matrimónio com a cerimónia. Temos de preparar os casais de noivos para a vida da comunidade. Muitos destes casais só os encontramos quando trazem os filhos para o batismo ou a catequese, e portanto nós temos a possibilidade de integrar os jovens casais na vida da comunidade, porque a comunidade é que evangeliza.

Uma integração pré-matrimónio ou pós? 
A integração deve ser feita durante a preparação para o matrimónio, para que eles possam descobrir como vão viver a sua vida matrimonial e familiar integrados naquela comunidade que os recebeu e os preparou para o matrimónio.


Isso implicará uma preparação mais estendida no tempo? 
Sim, mais estendida no tempo e mais aberta à comunidade. A dimensão da descoberta da comunidade onde se vão fixar, que nem sempre é a comunidade onde se casam, é muito importante. Estive com alguns casais que me diziam “estou há cinco anos nesta comunidade, venho todos os fins-de-semana à missa, temos três crianças que vão iniciar a catequese e nunca ninguém me perguntou quem eu era, de onde era e porque estava ali”. As comunidades têm de se abrir a este acolhimento dos casais novos. Nas áreas urbanas é difícil, mas é possível, porque se a preparação para o casamento leva as pessoas a descobrirem a comunidade onde vão estar inseridas, a partir daí é possível que a comunidade valorize o dom de uma nova família que vem ali ao seu encontro.

Mas falamos em participação nos serviço da paróquia, apresentação na eucaristia, o quê exatamente? 
De tudo isso. A minha experiência de sacerdote era, ao longo do primeiro ano, fazer um acompanhamento que lhes permitisse alguma privacidade, para se adaptarem à realidade da família, terem tempo para criarem uma certa autonomia, mas também tempo para descobrirem que a comunidade onde eles vivem têm espaços que estão livres para a sua missão, e muitos deles foram integrando-se na catequese, nas atividades de cariz social, na liturgia. Há muitos casais novos que se valorizaram muito através da participação na liturgia, ou noutras instâncias. Quantos foram integrados no conselho pastoral, na preparação do casamento de outros, ou até na constituição de equipas de casais. Mas sobretudo fazê-lo integrando-se na comunidade. Creio que as famílias jovens cristãs precisam de saber que o fazem numa envolvência de aconchego, integração e necessidade pastoral da comunidade que os recebe.

«Estamos [Igreja] ainda muito longe de dar as respostas que os casais merecem»

E isso é a chave para evitar as situações de sofrimento no futuro? 
É sobretudo a certeza de que não estão sós. Nos momentos felizes partilham a felicidade, e nos momentos de dor, rutura, e provação, sabem que encontrarão sempre membros da comunidade que estão ao lado deles para os ouvir e acolher. Eu creio que a dimensão da preparação para o matrimónio precisa desta vertente nova de saberem que todo o caminho que fazemos como cristãos não o fazemos como ilhas isoladas, mas que o fazem integrados numa comunidade paroquial, vicarial e diocesana. Precisamos de dar aos jovens casais esta descoberta da realidade da comunidade em si. O valor da comunidade não está suficientemente afirmado na preparação para o matrimónio, e é necessário que naquela comunidade saibam quantos casamentos ali se realizaram, e que têm ali um espaço para viverem como família cristã. É um contributo necessário não apenas para eles, mas no bem que podem fazer ao outro.


Há espaço na doutrina para ponderar a possibilidade de um acesso dos divorciados e recasados à comunhão, passando por um processo penitencial, como alguns avançaram no sínodo do ano passado? 
Nessa perspetiva, o Santo Padre pediu-nos que disséssemos o que pensávamos. Sabemos que há famílias que passam por situações de grandes provações. Aguardamos que o Papa nos diga também aquilo que ele pensa e nos propõe. Da nossa parte, devemos estar disponíveis para caminhar em Igreja, sentindo que muitas vezes o problema, posto desta forma só com a comunhão, é ver as coisas apenas por um lado. Mas também não nos devemos esquecer no sofrimento que estas famílias têm de não poderem comungar e de não poderem participar em pleno. As situações são muito diferenciadas e cada um tem o seu percurso de vida, e é importante que a Igreja saiba caminhar com cada família, com cada pessoa de modo muito personalizado, e isso tem-nos faltado. Estabelecemos normas, e elas são importante, mas elas não nos devem dispensar de fazer um caminho com essas pessoas.

Um caminho que pode levar a ponderar essa possibilidade, em circunstâncias específicas?
Pode levar-nos, em algumas circunstâncias específicas, a ajudá-los a perceber, em primeiro lugar e como dizia o Papa, da validade do seu casamento. Temos de ajudar a valorizar isso, e há situações em que precisamos de ajudar na questão da validade do mesmo. Depois há um processo espiritual para as outras situações, a aguardamos com serenidade aquilo que o Espírito Santo e o Papa irão dizer à Igreja, pois é isso que sempre se fez na Igreja desde o Concílio de Jerusalém. Esta espera não nos livre de acompanharmos todos os dias os casais que sofrem e de acolher os que não podem receber esses sacramentos. Estamos ainda muito longe de dar as respostas que os casais merecem.

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