23 de janeiro de 2014

Nulidade: Vaticano quer acelerar processo

O presidente do Conselho Pontifício para a Família, Mons. Vincenzo Paglia, assegurou em exclusivo à Família Cristã que «há já algum tempo» está a pressionar para que sejam acelerados os processos de nulidade do matrimónio, uma perspetiva que, segundo o prelado, o Papa Francisco partilha e que será «solicitada» também por ele. «Não podemos prolongar demasiado tempo estes processos, porque o problema não é anular um matrimónio já realizado, mas reconhecer que aquele casamento nunca existiu e que foi viciado logo nos inícios. Pro veritate devemos despachar tais processos», defende o presidente do Conselho Pontifício para a Família, em declarações prestadas em Roma.

Mons. Paglia indicou ainda que não se pode olhar para todos os casos de divórcio da mesma forma, e introduziu uma novidade ao distinguir entre quem se divorcia e quem é abandonado sem o desejar e sem nada poder fazer para contrariar. «Um homem ou uma mulher que sejam abandonados porque são velhos, isto não merece também uma resposta?», questionou o prelado, deixando antever que esta diferenciação de situações possa ser uma solução para quem se viu numa situação de divórcio sem nada ter feito para tal.

D. Vincenzo Paglia
Presidente do Conselho Pontifício para a Família
Um acelerar dos processos de nulidade permitirá diminuir o número de divorciados que existem na igreja, assim como o número de fiéis que, por via do divórcio, se veem impossibilitados de participar na vida comunitária através dos sacramentos. O facto de muitos dos casamentos poderem ser objeto de nulidade hoje em dia prende-se com a pouca consciência que existe da parte dos noivos sobre o sacramento que pretendem receber.

D. Vincenzo Paglia reconhece que, aqui, a falha é da Igreja e da preparação que faz com os noivos. «Num certo sentido, diria que sim. É preciso compreender que hoje, ao contrário do passado em que a cultura e a economia ajudava os esposos, hoje a cultura, a economia, a política e a própria atitude desencoraja os jovens, que acabam por se casar mais tarde», lamentou o prelado. Neste sentido, o arcebispo italiano anunciou que estava a elaborar um documento que sirva para refletir sobre as questões da preparação do matrimónio. «Sejamos claros: um "príncipe encantado" não existe. Não existe um casamento cujos sentimentos nunca sejam feridos. O perdão aqui é necessário; precisa-se de sofrimento», defende o prelado. Comparando a família a uma equipa de futebol, Mons. Paglia argumenta que, «se os jogadores de uma equipa de futebol devem fazer treinos, sacrifícios e jejuns para vencer um campeonato, quem pode pensar que não seja do mesmo modo importante, e até muito mais, ter uma equipa não de futebol, mas uma equipa de família, com capacidade de criar para poder continuar a vencer no amor», questionou o responsável. Continuando com o futebol, o prelado porque é que é possível alguém dizer «Benfica forever [para sempre]», mas ser incapaz de dizer à sua noiva «forever». «Esta é a cultura que precisa de ser mudada, e é importante que os jovens de hoje não tenham medo, uma vez que, infelizmente, a cultura não ajuda», refere.

Os perigos da «superficialidade» e da «rigidez»
No que diz respeito a uma possível aproximação da posição ortodoxa, que permite um segundo matrimónio devido a uma interpretação do termo porneia, que aparece no Evangelho, o arcebispo italiano é cauteloso, mas não rejeita essa hipótese. «Esse é um assunto que o Papa Francisco pôs em cima da mesa quando regressava do Rio de Janeiro, e estou certo que a solução vai aparecer», disse, acrescentando no entanto que a solução partirá sempre do «acolhimento muito mais aberto que a Igreja deve ter em relação a estas situações de dificuldade, que são muito diferentes», anunciou.
Quanto a mudanças práticas e efetivas, o prelado adverte para dois perigos. «Devemos enfrentar os dois perigos que se colocam: a superficialidade de um lado, e a rigidez do outro. Há problemas teológicos que não podem ser esquecidos, problemas pastorais que nalguns casos podem ser acelerados, aparecerão soluções que acabam por se verificar impraticáveis, e outras, pelo contrário, para praticar», defende.

Por tudo isto e considerando as dificuldades que a família atravessa hoje em dia, Mons. Vincenzo Paglia considera importante a criação de uma «rede de amizade entre as famílias». «Nisto a comunidade cristã deve fazer muito, muito, muito mais. Não podemos mais ir à Missa cada um por sua conta, pensando apenas no seu pequeno lar. Devemos ir à Missa para transformar a Igreja numa família de famílias que sabe acolher também aqueles que têm uma família gasta ou dividida e em crise», concluiu.

Ricardo Perna

8 de janeiro de 2014

«A Família é a maior pérola do mundo»


 
*entrevista de Ricardo Perna
Tem a cara de um avô, mas o pensamento de um profundo conhecedor da realidade da família. Mons. Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família, entra na sala para a entrevista apressado e sai quase a correr, mas enquanto esteve com a FAMÍLIA CRISTÃ as suas respostas não demonstraram pressa ou urgência. Antes, havia um profundo conhecimento da realidade da família hoje em dia, e um desejo de que as famílias se entendam e se apoiem nos momentos mais difíceis, como o desta crise que se vive nos nossos tempos. Reconhece que a Igreja precisa de fazer mais em relação à catequese familiar e pergunta porque é que não há quem dê catequese aos pais e aos seus filhos com menos de seis anos.
FAMÍLIA CRISTÃ (FC) – Pensa que o conceito de família que a Igreja defende pode estar a mudar?
Mons. Vincenzo Paglia (M.V.P.) –
Não há dúvida que o conceito de família está a mudar. A questão é saber se está a mudar na substância ou nas formas. Na substância, creio que seja indispensável que a família continue a ser aquilo que sempre foi: pai, mãe e filhos. Se depois existem outras formas de convivência, não são certamente uma família, porque a família exige, pela sua natureza própria, a continuidade das gerações. Dou um exemplo: não acredito que em Lisboa, há dois mil anos existissem as mesmas casas de hoje. Hoje, penso que Lisboa tem lindos palácios, extraordinários, mas sempre quatro paredes e um teto. Era assim há dois mil anos, e hoje também. Isto é de tal maneira evidente que significa que, por comparação, não se poderia dizer que duas colunas sejam um palácio... Parece-me um pouco um problema. Toda a tradição jurídica dos nossos antepassados – a grande tradição do Império Romano e depois até a grande tradição laica, que deu origem aos direitos humanos, aos direitos das crianças – diz que a família é realmente pai, mãe, filhos, sobrinhos, primos, que continuam o curso dos séculos.

FC – Apesar dos níveis demográficos baixos, não se fala da necessidade de ter filhos. Porquê?
M.V.P. –
Este é um problema que existe por defeito de cultura. É o medo do futuro. Estamos de tal forma concentrados sobre o presente e sobre a nossa "pequena" felicidade que esquecemos a felicidade da sociedade e também dos nossos filhos. E até da própria Europa. Um antigo provérbio árabe dizia: Um agricultor, quando deita à terra a semente de uma palmeira para que cresça, sabe que os frutos não será ele a comê-los, mas sim o filho ou até o filho do filho. E isto é como se dissesse que a falta de filhos acompanha a falta de esperança e de futuro. Muitas vezes a política não ajuda, porque se vier um filho, logo se começa a temer o problema económico. Se vem um segundo, com a crise, chega a pobreza. Então é difícil que os jovens sejam levados a casarem-se. Em breve não se casarão também porque não há trabalho. Mas isto é culpa da família ou da falta de trabalho? Muitos não se casam porque não têm casa. E quantos não se casam porque não têm um salário suficiente? Neste sentido, a baixa da natalidade é um problema enorme. Quando formos anciãos e não houver jovens, o que é que nos acontecerá?

FC – Muita gente pensa que a falta de crianças é uma das causas do problema económico, porque não há crianças que cresçam para ser adultos e suportar a vida na sociedade...
M.V.P. –
Neste sentido culpo uma falta de cultura solidária, porque hoje cada um pensa somente em si, na própria felicidade, no próprio interesse, no próprio lucro. Perdemos um certo pensar comum, perdemos a beleza do "nós", que na família encontra o primeiro núcleo. É por isso que pôr a família em risco, não é só colocar em crise apenas a família, mas também Lisboa, Portugal, a Europa, é pôr em causa a beleza da vida. Quando a Europa era forte, quando Portugal tinha uma força interior, conquistou o mundo. E agora o que é que conquistámos? Nem quase nós mesmos! Por isso, é indispensável encontrar uma força espiritual ou interior; e isto digo-o antes de mais a nós católicos cristãos. Temos de descobrir a beleza da força do matrimónio. E digo-o até aos leigos; até o digo a quem não crê. Onde vamos acabar, nós os anciãos? Quem nos ajudará? Porque haveremos de ver a velhice como um naufrágio e não como a conclusão de uma vida? Seremos fracos, mas se nos encontrarmos sozinhos, a fraqueza será pior do que a morte. E é por isso que esta terrível práxis hodierna se está a transformar na cultura da eutanásia. Chamam-na precisamente «eu...tanásia», uma boa morte, a de cada um a provocar a si mesmo. Eu penso, caros amigos, que a família é a melhor pérola do mundo. Não a abandonemos!

FC – Pensa que a sociedade corre o risco de desaparecer? Estamos a caminhar para o fim de uma era no mundo?
M.V.P. –
Eu creio que, por exemplo, não há dúvidas que em Itália, para fazer uma pequena comparação, a imigração de estrangeiros igualou a queda de natalidade, e assim há um pouco mais de esperança, por terem vindo estes estrangeiros que têm mais filhos do que os italianos. Mas efetivamente, se uma família não gera mais filhos – é claro que, não somente a família, mas a Nação –, destina-se aos poucos a desaparecer. Não é que este desaparecimento venha de repente. Começa com o desregramento e com a solidão que crescem, e com a procura do bem-estar individual desaparece aquela beleza e também a fadiga de construção do "nós", de nos construirmos em conjunto. É claro que isto custa. Quando uma mãe jovem tem um primeiro filho, é claro que algo sucede de sacrifício. E quando chega o segundo, aparece outro problema que tem a ver com a relação entre os dois, com as invejas. Mas quando um fica doente, imediatamente cresce a sensibilidade de ajudar aquele que está no tapete. E é assim que se constrói a família e a sociedade.

FC – Muitas crianças chegam à catequese sem bases teológicas que a família devia dar. É um problema também da paróquia?
M.V.P. –
Esse problema é um defeito pastoral. Na minha diocese, Termi, através de uma reorganização da Catequese da Iniciação Cristã, o batismo não está desligado dos outros. Porque é que, por exemplo, temos tantos catequistas para a Primeira Comunhão, tantos catequistas para o Crisma, mas porque é que não criámos também catequistas para os pais e para as crianças até aos sete anos? É um problema.

FC – Mas esse não deveria ser o papel da família?
M.V.P. –
Certamente. É o que estou a escrever e estou empenhado em apresentar no Manual de Preparação para Noivos. Aí vou dizer a estas pessoas que o nascimento de um filho deve implicar um acompanhamento durante todo o percurso da adolescência. Dou-lhe um exemplo: Não estou a ver que uma família só seja responsável pela educação até mais ou menos aos sete anos. Porque é que acontece isto na Igreja, que após o batismo, só levamos a criança à igreja depois dos sete anos? Desde a maternidade, deve-se levar para casa para sempre o fazer crescer... até ao Crisma. Como uma criança, logo que nasce, tenta procurar a mãe e reconhecê-la, pelos gestos e pela voz (não porque a entende!), assim todos os nossos filhos devem crescer experimentando o cheiro das velas. Infelizmente, hoje nota-se que é cada vez mais difícil ter as crianças na igreja, porque não estão habituadas.

FC – Os projetos de catequese familiar que surgiram na América Latina e vieram para a Europa são experiências que lhe agradam?
M.V.P. –
Também nisto é importante que na Igreja haja uma troca de experiências. E não duvido, porque eu próprio estive no Rio, onde vi os programas do episcopado brasileiro, que são excelentes sob este ponto de vista. E creio que é até comum a atenção que em certas dioceses se dá neste acompanhamento desde o nascimento, em que temos criancinhas, adolescentes, jovens, todos juntos, a participarem. Diria que a educação é como o amor: não poderá terminar, porque é indispensável.